Elle S’En Va (2013)
Origem: França
Diretora: Emmanuelle Bercot
Roteiro: Emmanuelle Bercot
Com: Catherine Deneuve, Nemo Schiffman, Gérard Garouste
Catherine Deneuve nos dá as costas. Plano fechado na nuca da atriz. Seus cabelos dourados, dançando ao vento, dão a cor do filme. Ela caminha e se distancia de nós, espectadores. Elle s’en va!
CATHERINE DENEUVE, seu nome aparece na tela em letras garrafais de cor amarela. Ela é o filme. O filme é pra ela!
Emmanuelle Bercot – diretora do sketch mais interessante de Os infiéis (2012), além dos filmes Clément (2001) e Backstage (2005) – não desmente: o filme foi de fato feito para a eterna Belle du Jour.
Trata-se de um road-movie (falei sobre esse gênero no post do dia 18/9), em que Betty, uma sessentona (ou setentona), depois de se saber largada por seu amante, resolve partir em fuga rumo à liberdade. Talvez liberdade não seja bem a palavra. Na verdade, o que Betty procura é um pouco de ar puro para respirar. Ela se sente sufocada por aquela vida já tão sem razão de ser. Ela sai, então, sem rumo, dirigindo sua velha Mercedes dourada, em busca de um cigarro ou de um não sei o quê que dê novamente sentido à sua vida de mulher madura.
No caminho, ela vai cruzar com as mais variadas figuras. Desde um velhinho camponês simples, que vai lhe enrolar um cigarro à moda antiga até um homem que ganhou um concurso reproduzindo sons de animais. A cena do velhinho é particularmente interessante. Num ritmo super lento, vemos os dedos inchados do velho em close. Com suas unhas sujas, ele vai enrolando com dificuldade e muuuuita lentidão o cigarro de palha para Betty. A cena contrasta com a agonia e a angústia vividas pela “fugitiva”. Nós, espectadores, também nos sentimos incomodados e agoniados com tamanha lentidão. Não estamos mais acostumados à calmaria da vida simples. E nos incomoda a falta de destreza daqueles dedos gordos e sujos do velho.
Viúva, morando ainda com a mãe, com quem divide o trabalho no restaurante (negócio próprio) em uma cidadezinha perdida na Bretagne, Betty nunca cultivou um bom relacionamento com a única filha que tem, Muriel. Porém, durante sua “fuga”, ela recebe uma ligação da filha, pedindo-lhe um favor: levar o neto Charly (Nemo Schiffman) – com quem ela também tem pouquíssimo contato – até o avô paterno, para que o o menino fique por lá uma semana, enquanto ela tenta arrumar um novo emprego.
A partir daí, todos ingredientes para um bom road-movie estão aí alinhados.
Elle s’en va é um filme de autor, como se convencionou chamar aqueles filmes que não atendem aos padrões estéticos hollywoodianos e que trazem, ao invés, a marca de seus autores. Tomadas feitas com a câmera na mão, uso e abuso de closes, deixando rugas, manchas e marcas da velhice em evidência, zoons abruptos, movimentos laterais maladroits, imagens fora de foco e mais uma porção de quebras nos códigos do cinema dito de transparência estão na paleta de cores de Emmanuelle Bercot. Há também um uso recorrente da imagem de Deneuve de costas, dentro do mesmo princípio da cena do início. Ele funciona como um tipo de pontuação, fazendo transições espaciais e temporais na história.
O filme parece, assim, dedicar-se a exibir a decadência. Não somente a decadência física, mas também a financeira, política, intelectual, pessoal. Não que Catherine Deneuve seja o símbolo desta decadência. Longe disso! Ela continua em forma, trabalhando, dando entrevistas, sendo admirada e respeitada. Mas ela, como todos os outros mortais, também envelheceu. Ela já não tem mais aquela pele que tinha, o corpo de Miss que tinha, nem as mãos lisinhas, esticadas e sem manchas do passado. E isso está no filme. Bercot não hesita em nenhum segundo em expor a Deneuve de hoje em toda a sua plenitude. Pelos closes, vemos suas mãos manchadas de senhora, seu rosto trabalhado pelas rugas, pelo botox, pela plástica ou seja lá por qual outro artifício contra o tempo que ela vem usando. O próprio carro que Betty (Catherine Deneuve) dirige é também uma estrela “decadente”. Uma Mercedes dourada antiga. Um carro que certamente teve seus dias de glória e que hoje denota um tempo que já foi. Um sucesso que já não existe mais!
Mas talvez esteja justamente aí o mais belo do filme. O de ter a coragem de exibir a realidade da vida, a “decadência” do corpo, da imagem, ou do papel que se ocupa na sociedade, para, em seguida, mostrar que ainda assim há um sentido em se continuar andando. Que a vida vale a pena em qualquer fase!
A trilha sonora é curiosa, com as letras das músicas se encaixando perfeitamente com a cena exibida. Uma atitude meio kitsch, meio passada, démodé, “decadente” (?). Mas tudo combina. Tudo faz sentido.
Há, no entanto, alguns deslizes. Erros bobos, como o excesso de merchandising (o primeiro da Nivea é horroroso), ou um não tão bobo assim, como um final muito facilmente resolvido. Mesmo assim, Elle s’en va é bom. E Catherine Deneuve é, sem dúvida, a grande estrela da festa. Ela está inteira no filme. Verdadeira, natural, simples, sem glamour, linda e, em hipótese alguma, decadente.
Um filme PRA PENSAR.