Malcolm & Marie (2021)

•fevereiro 26, 2021 • Leave a Comment

Origem: EUA

Direção: Sam Levinson

Roteiro: Sam Levinson

Elenco: Zandaya e John David Washington

Um filme em preto e branco, dois atores, um único cenário, uma única noite… pode ser bom? A resposta é sim, desde que você seja do tipo que gosta de filmes com pouca ação e muitos diálogos, claro!

Com mais jeito de cinema europeu do que americano, Malcolm & Marie é uma DR* sem fim, onde não há vilões nem vítimas. Ou melhor, ambos são vilões e vítimas, já que é assim que funciona qualquer relação conjugal. Quem tem razão, quem não tem? Isso é o que nos perguntamos o tempo todo no filme, sem nunca chegarmos a uma conclusão. Horas pensamos que Marie tem razão, horas achamos que ela está delirando e que Malcolm é que está sendo sensato… Uma espécie de gangorra de sentimentos, que se refletem no próprio ritmo do filme, que tem seus altos e baixos.

A história começa com uma casa vazia e um carro chegando ao longe. Descobrimos em seguida que seus moradores estavam no lançamento do filme do protagonista, Malcolm,  um cineasta interpretado por John David Washington, o filho de Denzel. Com ele, chega sua companheira Marie, uma jovem atriz, ex-viciada, brilhantemente interpretada por Zandaya, nova queridinha de Hollywood.

O filme, dirigido e roteirizado por Sam Levinson – o mesmo da série Euphoria, da HBO, estrelado pela própria Zendaya – é uma queda de braços em que não há vencedor. Filmado quase em segredo durante a pandemia, respeitando todos os protocolos de segurança, o roteiro acaba refletindo o clima de confinamento que o mundo tem vivido nesses últimos meses, em que casais dispõem de tempo de sobra para discutir a relação… Chantagem, autossabotagem, vitimização, traições, verdades, vaidades, vícios, amor, raiva, tudo está aqui em discussão.

A fotografia de Malcolm & Mary, em preto e branco, é linda, linda! E apesar do elenco diminuto, a casa parece cheia, fruto da movimentação coreografada dos personagens e da agilidade da câmera e de seus volteios por vários cômodos. Uma casa que, aliás, tem papel protagonístico, sendo praticamente um terceiro personagem dessa história, tão grande é sua presença na tela. Ela divide espaços e cenas, decora, dá ritmo, expõe, esconde e acaba criando um jogo de interior/exterior que pode muito bem ser entendido como uma alusão ao que escolhemos deixar ou não deixar transparecer de nossas almas.

O filme toca ainda em outro ponto deveras interessante, que é a questão da crítica cinematográfica. Sam Levinson é duro em sua maneira de retratar a crítica atual! Ele alega, pela voz de Malcolm, que hoje só tem valor aquele filme que tem uma causa, um discurso, uma questão política envolvida. Os críticos acabam por enxergar coisas que nem mesmo existem, em função de quem está por trás da câmera. Homem hetero branco? Mulher negra? Latina? Homossexual? Enfim, uma discussão super válida, já que na corrida dos festivais, o que temos visto é uma tendência a filmes ativistas sairem com as maiores premiações. O que obviamente não é ruim, já que defender causas é de fato uma das funções do cinema, que cada vez mais se consagra como um eficaz espaço de denúncias. Mas a sétima arte é também diversão, lazer, entretenimento. E nada impede que um filme assim seja também um ótimo filme! As polarizações e políticas de cancelamento atingiram a indústria cinematográfica, que se vê hoje engessada, pautada, amarrando a criatividade de muita gente!

Malcolm & Marie talvez não seja um filme que agrade a todos os públicos, já que está mais para um filme-divã ou para uma peça de teatro que explora (muito bem) os aparatos técnicos do cinema. Mas se você é do tipo que gosta de encarar um bom diálogo, uma boa atuação e gosta de histórias que misturam romance e drama, eu super recomendo!

UM FILME PRA PENSAR

*DR – discutindo a relação

O Dilema das Redes (2020)

•setembro 27, 2020 • Leave a Comment

Título original: The Social Dilemma

Direção: Jeff Orlowski

Roteiro: Jeff Orlowski, Davis Coombe e Vickie Curtis

Entrevistados: Tristan Harris, Aza Raskin, Justin Rosestein, Shoshana Zuboff, Jaron Lanier, Skyler Gisondo, Kara Hayward, Vincent Kartheiser, Anna Lembke

Para os que não temem o espelho, minha recomendação hoje é o documentário O Dilema das Redes, lançado neste mês na Netflix, dirigido por Jeff Orlowski. 

Lançado no Sundance Film Festival no início deste louco 2020, só agora o filme está disponível nessa plataforma de streaming. Estariam os dirigentes da poderosa Netflix analisando cuidadosamente o impacto que esse documentário poderia ter em seus números, já que a ideia aqui é justamente a de despertar a consciência de que estamos sendo manipulados pelas máquinas, ou pelos tão falados algoritmos???!!! 

Em O Dilema das Redes, algumas das mentes brilhantes por trás da criação do Facebook, Instagram, Twitter, Youtube, Pintarest, etc. falam dos perigos ocultos (ou não tão ocultos) dessas redes sociais, reconhecendo abertamente que a criatura acabou dominando o criador! Em sua defesa, eles alegam que todas essas ferramentas de comunicação teriam sido criadas com um propósito X, que teria sido aos poucos desvirtuado, ganhando então vida própria para seguir o caminho perverso da total manipulação de seus usuários, resultando em lucros cada vez mais exorbitantes para seus jovens proprietários. Mas, será que esses moradores do Vale do Silício foram mesmo assim tão ingênuos a ponto de não prever em que suas invenções iam se transformar? Tenho cá minhas dúvidas…

O fato é que nos tornamos realmente uma sociedade altamente controlada, refém das redes sociais e dos mil aplicativos que surgem a cada dia aos borbotões, cada um com mais atrativos do que o outro. As ferramentas de controle são tão perfeitamente engendradas que deixariam George Orwell e Michel Foucault boquiabertos!

Em 2019, Privacidade Hackeada já tinha me deixado assustada com a constatação do poder que os tais algoritmos exercem em nossas vidas. O documentário de Karim Amer e Jehane Noujaim, que expõe e analisa o escândalo envolvendo Facebook e Cambridge Analytica na manipulação das informações de seus usuários durante campanhas eleitorais nos EUA e na Inglaterra, é um soco no estômago! Lembro que, aterrorizada ao entender a face sangue-suga das redes sociais, fiquei um bom tempo sem querer entrar na minha conta de Facebook e, desde lá, confesso que reduzi bastante meu tempo gasto nessa rede social. No entanto, como não sou de ferro e estando bem inserida nesta sociedade do espetáculo na qual vivemos, acabei substituindo-a pela “irmã” Instagram. Sem falar que nunca tive coragem de simplesmente “deletar” minha conta. Mea culpa.

No caso de O Dilema das Redes, o que mais assusta talvez seja a compreensão – ou a confirmação – do impacto que as redes sociais têm na formação (ou deformação) de nossas crianças e adolescentes. Obviamente, nós, pais e mães, já temos claro há algum tempo que o excesso de tempo passado na frente das telas é nocivo à saúde física e mental de nossos filhos. Mas quando ouvimos isso dos próprios criadores de tais ferramentas, corroborados por depoimentos de psicólogos experts no assunto – Professores de Stanford e Harvard -, a coisa parece que fica ainda mais gigantesca e ameaçadora.

Mas o que podemos fazer para mudar nosso comportamento se hoje tudo passa pelas redes? Como não checar o email várias vezes ao dia, ou o Facebook, Instagram, Linkedin, WhatsApp, se tantos negócios são feitos por ali? Sobretudo depois que a pandemia do Coronavirus passou a comandar nossas vidas? Como não ser um refém das redes? Essa é a pergunta que fica no ar quando terminamos de assistir a O Dilema das Redes. Uma pergunta para a qual não se tem fácil resposta, já que vivemos agora no que a psicóloga e economista Shoshana Zuboff chama de “capitalismo de vigilância”, surgido a partir do nascimento da Google e da monetização de dados pessoais via Internet. Um fenômeno que se espalhou rapidamente por todo o Vale do Silício, reflexo mesmo da evolução da tecnologia, e que trouxe uma série de benefícios para nossa sociedade. Isso não há como negar! É só lembrar como era a vida sem Uber, Rapi, Airbnb, Zoom e tantos outros aplicativos. 

No entanto, para que a “criatura” não seja soberana, é urgente criarmos mecanismos para driblar seu esquema de manipulação! Talvez passando alguns dias sem acessar às redes, desligando as notificações, não aceitando toda sugestão de artigo para ler ou de publicidade daquele produto que você nem precisa tanto… sei lá!   Pode ser que despistando os que nos controlam tenhamos alguma chance de não sermos tão escravos de suas escolhas. Porém, a maior ferramenta que temos e que precisamos desenvolver em nossas crianças e adolescentes é o pensamento crítico. Hoje, mais do que nunca, é preciso, ensinar nossos jovens a pensar. A educação mais uma vez – e sempre – parece ser o melhor caminho. Talvez o único!

PARA PENSAR MUITO

estou pensando em acabar com tudo (2020)

•setembro 6, 2020 • Leave a Comment

Título original: I’m thinking of ending things

Origem: EUA

Diretor: Charlie Kaufman

Roteiro: Charlie Kaufman

Elenco: Toni Collete, David Thewlis, Jessie Buckley, Jesse Plemons, Guy Boyd

Ontem à noite, aceitei a sugestão da Netflix e embarquei em mais uma de suas produções mirabolantes. Li a sinopse e confesso que não entendi nada! Vi o trailer e fiquei ainda mais confusa, sem entender exatamente do que se tratava aquele filme de título curioso, escrito em minúscula, em uma fonte tão pequena que dificultava a leitura: estou pensando em acabar com tudo.

O diretor é Charlie Kaufman, o que, de alguma maneira, já me serviu como pista para o tipo de filme a que ia assistir. Ele é o roteirista de Quero Ser John Malkovich (1999) e Adaptação (2002), os dois dirigidos por Spike Jonze, e ainda do maravilhoso Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembrança (2004), de Michel Gondry. Como diretor, sua estreia foi com Synecdoche, New York, lançado em 2008, que ainda não tive a oportunidade de assistir.

Baseado em livro homônimo escrito por Iain Reid, estou pensando em acabar com tudo conta a história de um casal de namorados – Jake (Jesse Plemons) e Lucy  (Jessie Buckley) – que parte em uma pequena road trip para apresentar a moça aos pais do rapaz. Uma trama, em princípio, sem grandes novidades, composta por múltiplos diálogos filosóficos que tratam de solidão, frustrações, fantasias, desejos e, sobretudo, da morte e do real sentido da vida. Tudo certo, até que vamos percebendo que tem algo de muito estranho nessa história: vários nomes (Lucy, Louisa, Amy) e profissões para um mesmo personagem (médica, pintora, física, poeta, etc.), objetos antigos e novos que convivem “naturalmente”. Chegando na casa da família de Jake, nos deparamos com um casal esquisitíssimo, interpretados magistralmente por Toni Collete e David Thewlis. Difícil explicar aquela relação familiar, mas como diz o próprio personagem Jake: qual família não tem lá seus problemas, não é? À medida que o tempo do filme avança, vamos ficando cada vez mais perdidos. Tempo, aliás, é o elemento-chave nesta obra, já que ele não obedece exatamente à noção que fazemos dele. Aqui passado e presente se misturam, se confundem, são uma coisa só.

Ao contrário do que imaginava, terminei de ver o filme sabendo quase o tanto que sabia quando li a sinopse, perguntando-me o que tinha sido aquilo que eu tinha acabado de assistir. Aquele filme com toques de Stanley Kubrick e com um final à la Miyazaki me deixou sem norte! Fui dormir com a cabeça a mil, tentando juntar as peças apresentadas, decifrar cada fragmento visto. Nem preciso dizer que acordei várias vezes pensando naquelas imagens, fazendo suposições, conjecturas. Estou pensando em acabar com tudo invadiu meus sonhos, despertou-me várias vezes, sempre na tentativa de entender seu enredo, de desvendar seus mistérios. Ao acordar tinha um cenário mais claro em minha mente. Bingo! Por um momento, achei que tivesse entendido a história. Talvez sim, talvez não… Comecei a ler sobre o filme e descobri que não estava sozinha na minha “sofrência”. E mais, que era esse mesmo o objetivo de Kaufman. Nada de história dada de bandeja ao espectador. Afinal, nós também temos que fazer nossa parte! Assim como fazemos quando estamos diante de uma obra de arte abstrata ou quando vamos a um museu de arte contemporânea. 

Ao ser questionada por meu marido se, afinal, eu tinha gostado ou não do filme, me dei conta de que, apesar de ter-me perguntado várias vezes ao longo de suas duas horas e pouco de duração sobre que raio de filme era aquele que estava vendo, tinha gostado sim bastante do que vi! O roteiro labiríntico, os diálogos super sofisticados, as inúmeras referências artísticas e filosóficas ali apresentadas, a faceta surrealista da história, a riqueza das simbologias destacadas, tudo, tudo me instigou, me fez ficar ligada, atenta, apesar do ritmo lento da narração. 

O filme é classificado como thriller psicológico e, de fato, a tensão faz parte dessa história. Kaufman lança mão de vários elementos do filme de terror clássico hollywoodiano  – viagem de carro no meio do nada em plena nevasca; porta do basement arranhada sem explicação lógica; prédio de High School com corredores vazios, onde apenas um zelador aparece de quando em quando fazendo sua limpeza… Zelador, aliás, que faz várias aparições ao longo do filme, em cenas intercaladas com a da road trip do casal protagonista, e que é de suma importância para o entendimento (ou não) da história.

Ah, queria contar mais sobre Estou pensando em acabar com tudo, explicar um pouco mais de seu enredo, contar minha interpretação. Mas acho que se fizesse isso, roubaria o prazer de deixá-los às suas próprias conclusões, descobertas e conjecturas. (Aliás, um conselho: não leiam textos explicativos sobre o fim do filme!!!!!) Tudo o que me permito acrescentar (ou pedir) por agora é que “abram seu coração” para esta experiência que é o último filme de Charlie Kaufman. Um dos mais loucos que vi nos últimos tempos, mas  um dos poucos a roubar meu sono e botar minha caixola para funcionar a pleno vapor até encontrar sentidos para aquelas belas imagens em movimento! E se, ao final de tudo, quiser trocar ideias, me escrevam por aqui pelo blog. Terei o maior prazer de responder e de apresentar meu olhar sobre essa história maluca, linda e, por que não dizer, triste, e também de me deixar embalar pelo olhar de vocês.

Um filme PRA PENSAR.

Sergio (2020)

•abril 21, 2020 • Leave a Comment

Origem: EUA

Direção: Greg Barker

Roteiro: Craig Borten (baseado no livro de Samantha Power)

Elenco: Wagner Moura, Ana de Armas, Brian F. O’Byrne, Clemens Schick, Clarisse Abujamra, Bradley Whitford, Garret Dillahunt, Pedro Hossi

Nestes  tempos sombrios em que vivemos, tempos de desgovernanças, angústias e desacordos, relembrar que temos heróis nacionais faz muito bem à alma! Foi essa a sensação que tive ao terminar de assistir à recém-lançada produção da Netflix, Sergio (2020), de Greg Barker.

Ainda que modificada para caber no formato biopic, a história contada nesse filme é inspiradora! Trata-se da vida de Sergio Vieira de Mello, brasileiro, carioca, alto funcionário da ONU, que deixou o mundo aos 55 anos, em 2003, vítima de um atentado em Bagdá, quando, mais uma vez, tentava negociar a paz entre povos. Um homem ambicioso, inteligente, carismático e extremamente hábil diplomaticamente, que ousava enfrentar seus próprios medos, contradizer ordens superiores e dialogar com opositores em nome de uma causa maior, a paz mundial.

Interpretado por Wagner Moura, que é também co-produtor do filme, o biopic de Greg Barker, que estreia na ficção justamente com Sergio, segue a trilha do clássico hollywoodiano, colocando Sergio Vieira de Mello em uma posição de herói quase imbatível. Uma espécie de James Bond dos direitos humanos, capaz de enfrentar e encantar a todos -– até seus maiores “inimigos” –, sempre em cenários exóticos, atraindo mulheres bonitas e inteligentes. Mas o mais louco de tudo é que, de fato, Sergio teve uma vida cinematográfica, tendo mudado constantemente de paisagens desde criança em função do trabalho de seu pai, que era diplomata de carreira. Foi um third culture kid, quando ainda nem se falava nesse conceito. Aos 21 anos, ingressou na ACNUR – Agência da ONU para Refugiados, morando onde quer que o dever lhe chamasse: Sudão, Bangladesh, Chipre, Moçambique e Camboja. Falava cinco línguas, passando de um idioma a outro na maior tranquilidade. Algo que pode parecer exagerado ou feito especialmente para adequar o personagem à narrativa do filme, mas que é algo natural para quem vive nesse mundo à parte que é o mundo da expatriação. Os cenários exóticos, as decorações étnicas de sua casa e a facilidade em se deslocar e se adaptar a diferentes culturas também.

Mas, longe de mostrar um homem perfeito, Barker optou nesta ficção por revelar-nos um aspecto mais pessoal da vida desse homem que escolheu a paz como causa principal, pagando por isso o alto preço do afastamento de sua família. Lembrei-me de Além da Liberdade (2011), de Luc Besson, sobre Aung San Suu Kyi (leia a crítica em http://www.lilialustosa.com/the-lady-2011/), que, na tentativa de assegurar a democracia em seu país, a Birmânia (hoje Mianmar) ficou anos sem ver seus filhos e marido que viviam na Inglaterra.  São renúncias que, num primeiro momento podem parecer egoísmo ou vaidade, mas que poucos estão dispostos a fazer, já que implicam em um comprometimento total com uma causa maior que suas próprias vidas. 

Por meio de vários flashbacks o filme narra os últimos anos da vida do diplomata, começando já na época em que ele ocupava o cargo de Alto Comissário da ONU para os Direitos Humanos. Apoiado em imagens de arquivo, tiradas diretamente do documentário homônimo realizado pelo mesmo diretor em 2009 (produção HBO), o foco aqui é a passagem de Sergio pelo Timor Leste, onde exerceu o papel de grande articulador da independência deste país, dominado até então pela Indonésia. Lugar também onde conheceu sua última companheira, a argentina Carolina Larriera, funcionária da ONU – interpretada pela atriz cubana-espanhola Ana de Armas –, e que estava com ele em sua derradeira missão em Bagdá, assim como na própria explosão que lhe tirou a vida. 

“Hollywoodices” à parte (como a cena com a Senhorinha no Timor Leste), o biopic tem bom ritmo, boa fotografia, bom elenco e consegue traçar de maneira bastante fidedigna um panorama da vida de Sérgio Vieira de Mello, esse brasileiro que foi protagonista da História (com H maiúsculo) mundial, sendo, ao mesmo tempo, um personagem digno dos melhores clássicos hollywoodianos. E para os que têm sede de realismo, recomendo fortemente o documentário do mesmo Barker, também disponível na Netflix, e que me tocou ainda mais que o biopic, provavelmente em função de minha paixão pelo gênero documentário… Mas, o legal mesmo, na minha opinião, é assistir à ficção, depois ao documentário e, em seguida, comparar os dois. Dá para ver que Barker manteve algumas falas de Sergio ipsis litteris e que, de certa maneira, até suavizou a brutalidade dos fatos vividos pelo diplomata. De um lado, a fantasia, de outro a dureza da realidade. Nos dois, o retrato de um homem que, apesar de seus defeitos (quem não os tem?), pode sim ser visto como um herói nacional e um orgulho para nós, brasileiros.  

PRA SE ORGULHAR

A Vida Invisível de Eurídice Gusmão (2019)

•março 20, 2020 • Leave a Comment

Origem: Brasil, Alemanha

Diretor: Karim Aïnouz

Roteiro: Murilo Hauser, Karim Aïnouz, Inés Bortagaray

Elenco: Carol Duarte, Julia Stockler, Gregório Duvivier, Fernanda Montenegro, Antonio Fonseca, Flávia Gusmão

No fim do ano passado, tive o privilégio de assistir ao filme A Vida Invisível de Eurídice Gusmão (2019), de Karim Aïnouz, em Genebra, Suíça, dentro da programação do Festival FILMAR en América Latina. Mais ou menos na mesma época, aliás, em que o filme teve sua projeção vetada na Ancine, apesar de ter sido financiado em parte por essa Agência…

Assistir a um filme brasileiro fora do Brasil é sempre uma coisa que me emociona! (Veja a crítica do filme Tropicália (2012), do dia 6 de maio de 2012-http://www.lilialustosa.com/2012/05/06/tropicalia-2012/) Me baixa um certo sentimento de “embaixadora” do meu país, que me faz sentir responsável por aquele filme, como se, de alguma maneira, eu tivesse participado de sua concepção / produção.

Desta feita, para agravar ainda mais meu sentimento de “co-realizadora”, convidei dois amigos para irem vê-lo comigo: uma inglesa e um italiano. Ou seja, levei dois estrangeiros que pouco sabem de Brasil para assistirem a um filme em português com legendas em francês. Admito que estava ansiosa! Apreensiva pela reação deles, ainda mais quando vi a duração do filme: 2 horas e 20 minutos (nada comparado às 3 horas e meia de O Irlandês, de Scorsese, claro!).

Mas eis que A Vida Invisível me embalou de tal maneira que acabei esquecendo que estava ali com dois estrangeiros, desconhecedores de Brasil, analfabetos em língua portuguesa e tampouco experts assim na língua francesa… Não trocamos uma só palavra ao longo do filme! E olha que eu estava preparada para responder a perguntas, caso eles não entendessem uma ou outra parte. Que nada! Medo tolo o meu. O filme de Karim Aïnouz é universal, atemporal, feito com delicadeza, cuidado e maestria. Ainda que o diretor diga que há muito da vida dele ali – ele pode ser o menino, filho de Guida, criado por várias mulheres – ele conseguiu transformar uma história pessoal em uma narrativa que atinge a todos em qualquer canto do planeta.

Baseado no livro homônimo de Martha Batalha, o filme se passa no Rio de Janeiro dos anos 50 e conta a história de duas irmãs – Guida (Julia Stockler) e Eurídice (Carol Duarte) – separadas por um pai autoritário e uma mãe submissa. Duas irmãs que vivem realidades distintas, mas igualmente complicadas: uma tem sua carreira de pianista atravancada por ser mulher e mãe, tendo que se adequar a um casamento praticamente arranjado; a outra, mãe solteira, abandonada pelo namorado e pelos pais, é obrigada a começar sua vida de adulta do zero, sozinha, indo à luta para alimentar seu filho, tendo que criar novos vínculos afetivos para suprir a ausência da  sua família de sangue. Vidas paralelas impensadas, não desejadas, de mulheres que lutam para tornar visíveis seus desejos e audíveis suas vozes.

Um filme que nos faz repensar o conceito de família, de amor de mãe, de pai, de irmã, de filho… um sentimento que pode surgir em locais (e pessoas) que nem imaginamos. Um filme que fala de amor, certo, mas, sobretudo, que examina atentamente a condição da mulher, tantas vezes objeto, tantas vezes voz passiva, tantas vezes reprimida em seus desejos, violentada em seus sonhos. Um tema que, infelizmente, ainda é realidade na maior parte dos países do mundo. E para isso, Karim Aïnouz teve a brilhante ideia de usar Gregório Duvivier, humorista conhecido, para interpretar Antenor, marido de Eurídice. O que deu um toque de patético às cenas de machismo explícito. Fantástico!

Com luzes coloridas, muita água, suor, imagens cheias de ruídos, deterioradas – sem alta definição, apesar de digital, – e uso quase excessivo de música, com um piano que dá voz à Eurídice, A Vida Invisível de Eurídice Gusmão é um ótimo filme, digno de estar na briga por estatuetas em qualquer festival aí pelo mundo! Não à toa, já ganhou vários prêmios, entre eles o principal de Un Certain Regard em Cannes no ano passado, tendo estado ainda na briga por uma vaga entre os candidatos ao Oscar de melhor filme estrangeiro.

Um senão do filme pra mim foram os fortes sotaques paulista e carioca das duas irmãs, filhas de mesmo pai e mesma mãe (ambos portugueses), moradoras do Rio de Janeiro. O que para os meus amigos estrangeiros, não foi um problema “at all”, claro! Mas isso me incomodou um pouco, admito… nada que atrapalhasse, porém, o brilho deste belo filme brasileiro!

PRA PENSAR e PRA SE ORGULHAR.

Coringa (2019)

•outubro 17, 2019 • Leave a Comment

Título original: Joker

País de origem: EUA

Diretor: Todd Phillips

Roteiro: Todd Phillips e Scott Silver

Elenco: Joaquin Phoenix, Robert De Niro, Zazie Beets, Frances Conroy, Brett Cullen

Logo que ouvi falar que ia sair o filme do Coringa, pensei: mais um blockbuster de heróis… nesse caso, de um anti-herói. Super produção, muitos efeitos especiais, muito barulho, cortes rápidos, muita ação, pouco tempo para se analisar qualquer coisa, puro cinema de entretenimento. E logo pensei que isso deveria ser uma reação da DC Films, que nos últimos anos anda perdendo terreno feio para a Marvel Studios, com seus Avengers e Panteras Negras da vida. Diga-se de passagem, adorei Pantera Negra!

Enfim, confesso que não fiquei muito animada e pensei em esperar o filme chegar na Netflix para assistir. Até que comecei a ler sobre a repercussão que o filme estava tendo nos Estados Unidos, chegando mesmo a ser entendido por algumas plateias como uma mensagem subliminar contra o governo Trump. Soube até da circulação de um texto do Michael Moore, por meio de uma amiga que mora em Washington (Obrigada, Fê!), defendendo o filme e ressaltando o valor de sua mensagem nos tempos atuais, época sombria, em que muitos medos povoam nossos pensamentos.

Me rendi então à famosa “peer pressure”, e fui, no fim de semana passado, assistir ao Coringa, mesmo sabendo que estava em pleno período de “invasão blockbuster”. Ou seja, um único filme hollywoodiano ocupando praticamente todas as salas de cinema da cidade, deixando só os piores horários para produções locais ou mesmo de outros países. Mas minha curiosidade foi mais forte que minha bronca… me rendi e vou dizer: valeu cada segundo!

O filme de Todd Phillips é um filmaço, daqueles que você sai e fica por horas discutindo, pensando, refletindo. Um filme, sem dúvida, duro de ver, não pelo excesso de violência física – confesso que achava que ia ser pior! -, mas pelo excesso de realidade impresso naquela tela gigante do cinema. Excesso de verdade sendo atirada bem na nossa cara.  Excesso quase insuportável quando entendemos que nós, que estamos ali sentados confortavelmente naquela sala de cinema, somos a elite ali representada. Aquela elite que ataca, que chuta, que discrimina e que, acima de tudo, parece ignorar o que está acontecendo na nossa sociedade. Elite que desvia o olhar ao passar ao lado de um mendigo dormindo na rua, que fecha rapidamente o vidro do carro quando sabe que vem aquele velhinho ou aquele deficiente físico pedir dinheiro outra vez… Mea culpa.

Obviamente, Coringa é uma grande alegoria de nossa sociedade, e, por isso mesmo, se permite trabalhar com excessos e com muitas metáforas. E isso assusta! Mas são justamente essas extrapolações ou caricaturas de nós mesmos que nos fazem entender aquela tela como um espelho do que estamos nos tornando ou, quem sabe até, do que já somos.

Ao acompanharmos o passo a passo da construção do “monstro” em que vai se convertendo Arthur Fleck (magistralmente interpretado por Joaquin Phoenix), enxergamos muitos casos de conhecidos nossos, quer seja na pele do próprio Arthur, quer seja na pele dos que estão em seu entorno, ajudando a construir a “criatura-Coringa”. Enxergamos, no início, um ser humano que tem um sonho: vencer na vida como comediante. Uma pessoa que, apesar das adversidades sociais (pobreza) e de problemas psicológicos (sofre de uma doença mental em que não consegue controlar o riso), tenta alcançar esse sonho por meios lícitos. Vemos, assim, ao longo do filme, vários momentos em que aflora a bondade naquele homem (como o cuidado que tem com a mãe velha e doente), ou ainda de ingenuidade, misturados a rasgos de delírio, transmitidos por aquele corpo frágil que não se faz compreender nem mesmo pela assistente social que deveria ajudá-lo. No entanto, o descaso e a ignorância dos que detêm o poder (políticos, empresários, imprensa, artistas, assistentes sociais, “meninos de Wall Street”, etc.) vão minando a conta-gotas os bons sentimentos que existem naquele corpo solitário e sofrido.

Não à toa, o Coringa de Todd Phillips é cheio de referências implícitas e explícitas ao grande Charles Chaplin, que sabia tão bem dosar o riso e a dor. Quem melhor, na história do cinema, soube (e teve coragem de) levar às telas comédias de aparência ingênua e que eram, na verdade, grandes críticas à sociedade de então?

Não, definitivamente  Coringa não é uma apologia à violência, como muitos clamam por aí. Muito ao contrário. O triunfo do Coringa, aplaudido em seu ato final, não é consequência dos assassinatos que cometeu, muito menos reflexo do monstro em que se transformou. Sua grande vitória, e por isso as palmas, é ter-se feito ouvir e, assim, ter liberado o grito de milhões de “palhaços” que vivem na penumbra, escondidos atrás de máscaras que lhes roubam a identidade. É ter dado voz aos “invisíveis”. É ter despertado uma camada da sociedade que vinha aguentando as pequenas violências do dia-a-dia sem nada fazer, sem protestar.

O filme de Todd Phillips me fez pensar em O Grito, de Munch. Acho que é isso: Coringa é, para mim, a liberação daquele grito sufocado, que tenta escapar de dentro de um ser deformado pela sociedade, de uma figura contorcida de dor e de sofrimento. É a materialização daquele grito, do pedido de socorro de uma gente tão necessitada!

Não fiquem com medo da violência do filme. Vejam Coringa. Vale muito a pena!

PRA PENSAR.

Roma (2018)

•março 4, 2019 • 3 Comments

Origem: México

Diretor: Alfonso Cuarón

Roteirista: Alfonso Cuarón

Atores: Yalitza Aparicio, Marina de Tavira, Marco Graf, Daniela Demesa, Carlos Peralta, Nancy García

Basta digitar “Roma Alfonso Cuarón” no Google para ficar impressionado com o número de prêmios recebidos por esse filme tão pessoal do diretor mexicano, já ganhador de vários Oscares por seu também excelente Gravidade (2013). (Leia a crítica no post de 27/10/2013). No entanto, alguns espectadores têm ficado surpresos, alguns até indignados, com essa quantidade de galhardetes recebidos por um filme que consideram monótono, lento demais e com uma história que não conta nada… um “dramalhinho”, como colocou uma de minhas alunas.

Mas vamos lá, vou fazer aqui explicitamente a defesa de Roma, que considero um filme excelente, super merecedor dos prêmios recebidos, apesar de ter dito em texto recente  que não era obra para ganhar o Oscar de melhor filme de 2019, o que continuo afirmando.

Roma decididamente não é um filme tipicamente hollywoodiano. Trata-se de um filme de arte, poético ao extremo, com uma fotografia de encher os olhos e o coração, e com movimentos de câmera precisos, bem calculados, coreografados, capazes de dar ao espectador uma boa noção da realidade ali retratada. O ritmo é lento sim, mas é justamente essa lentidão que nos permite apreciar a beleza de sua fotografia e os detalhes de uma história “sem grandes acontecimentos”.

Já de início, o plano do chão (não identificável num primeiro momento) em plongée total com uma água ensaboada que vem e vai em pequenas ondas, é simplesmente maravilhoso!  Ondas que refletem um pedaço de céu. Um avião que passa, confinado no quadrado daquele reflexo. Ondas que vão e vêm, num movimento que embala e que já anuncia o ritmo da narrativa a que vamos assistir. A câmera se move em seguida para cima e abre para mostrar o palco da história que será contada, perseguindo a empregada doméstica Cleo (Yalitza Aparicio), a protagonista do filme, num belo plano-sequência sem pressa de tudo mostrar. Um início que, na verdade, faz eco à sequência já quase do final do filme, em que as ondas do mar vêm e vão, como se tivessem o poder de lavar as feridas e levar embora as tristezas e decepções da “vida como ela é”. Sim, porque Roma é isso, um filme sobre “a vida como ela é”. Um filme de narrativa simples, que não conta nenhuma história mirabolante, nenhum “fait divers”, não sendo nem de longe o que costumamos chamar de dramalhão mexicano. 

A história contada em Roma é simples, é a da infância do próprio diretor Alfonso Cuarón, terceiro de quatro filhos de uma família de classe média alta mexicana, morador do bairro Roma. Uma história que poderia ser a minha, a sua e a de tantas outras pessoas que vivem ao nosso redor. Uma história, no entanto, muito característica das sociedades latino-americanas, que costumavam ter (ou ainda têm) empregadas domésticas  que moravam em suas casas e que faziam da vida da família para a qual trabalhavam a sua própria vida. Uma relação, sem dúvida, extremamente complicada de se entender se vista por olhos europeus ou norte-americanos. Para eles, essa relação é algo impensável, inconcebível, se situando no limiar da escravidão. E, infelizmente, não podemos negar que há casos que chegam muito próximo disso. Há patrões que maltratam seus empregados, que lhes pagam de forma indigna, mesmo fazendo-lhes trabalhar horas a fio. Há os que lhes dão comidas diferentes, que separam os pratos e copos que podem usar, que lhes privam de ter suas próprias vidas. Reflexo direto da desigualdade social desses países, mas que, felizmente, vêm mudando pouco a pouco, sobretudo em função de vários direitos trabalhistas adquiridos. Por outro lado, não podemos negar tampouco que há um lado afetivo que nasce dessa relação e que é igualmente difícil de explicar ou de transmitir para alguém que nunca teve uma babá, uma empregada morando em casa, que nunca viveu esse sentimento, que nunca experimentou o amor que pode dali brotar. E para mim, é aí que está a grande beleza do filme de Cuarón. Afinal, falar sobre os problemas surgidos dessa relação desigual, fruto dos abismos sociais presentes nos países subdesenvolvidos ou em vias de desenvolvimento, não me parece original, embora de suma importância. Esse tema já vimos aos montes! Mas conseguir colocar a lupa nas flores que nascem desses cactos, isso sim, me parece um trabalho difícil, tarefa para uma alma sensível, merecedora de muitos prêmios.

Roma é então um filme sobre o amor. Uma história sobre seres humanos que, independentemente da classe social a que pertencem, amam, sofrem, choram, riem, sentem, vivem… Cuarón consegue assim, através de um trecho da vida de Cleo, e de um período difícil na história de sua própria família – separação dos pais –, descrever a complexa relação entre empregada e patroa de uma maneira sensível, honesta, simples, delicada, sem cair nunca nos estereótipos e sem fazer justamente grandes dramas de tudo isso. Mostra, ao mesmo tempo, a grande quantidade de horas trabalhadas sem descanso por parte de Cleo, da falta de tempo e de espaço para sua vida pessoal, mas também mostra o apoio que ela tem de Sofía (Marina de Tavira), sua patroa, na hora em que suas escolhas, tomadas fora do universo de trabalho, acabam conduzindo-a para um caminho de sofrimento. O foco passa a ser aí a solidariedade entre essas duas mulheres “abandonadas” por seus parceiros, o apoio mútuo, a compreensão e, por que não dizer, a amizade que surge entre elas. Sofía às vezes grita com Cleo, abusando de sua condição de patroa, mas também grita com o filho, abusando da sua condição de mãe, da mesma maneira que o marido grita com ela, abusando da sua condição de marido e de homem… 

Roma, que, aliás, Cuarón nunca escondeu que retratava sua infância, não deixa de ser um tipo de mea culpa do diretor, ou melhor, uma bela reflexão sobre essa relação desigual entre patrão e empregado doméstico, causada sobretudo pelas disparidades sociais de nossos países ainda tão carentes de desenvolvimento. Mas a beleza maior que ele mostra, no entanto, são os sentimentos genuínos que podem existir nessas relações, amores verdadeiros entre crianças e babás (como o dele para Libo, verdadeira Cleo, a quem o filme é dedicado), confiança e solidariedade entre mães e empregadas, mulheres que confiam seus filhos aos cuidados de outras mulheres, às vezes também mães, tantas vezes quase-mães. Algo que teve em mim, latino-americana que sou, o efeito das madeleines de Proust… Não pude me impedir de voltar no tempo e pensar na minha “Baia” – era assim que eu a chamava – que tive que deixar em Fortaleza quando minha família se mudou para Brasília. Eu só tinha 4 anos e, naquela época, ela e minha amiga Adriana, que é minha amiga até hoje, eram meu mundo. Lembro até hoje da dor de deixá-las… A nossa relação era tão forte que quando nasceu meu primogênito,  “Baia” veio cuidar de mim e dele, ficou três meses comigo em Brasília, morando em minha casa, dividindo comigo minha intimidade, me ajudando em minhas angústias de mãe de primeira viagem. Ela já tinha dois filhos adultos. Me senti protegida, amada, querida e tive certeza de que meu filho também estava sendo muito amado por ela.

Quanto à quantidade absurda de prêmios arrebatados por Roma, claro que existe também aí por trás toda uma indústria. Com certeza a poderosa Netflix, percebendo o potencial do filme de Cuarón, fez uma grande campanha para que eles acontecessem. O jogo da indústria cinematográfico funciona assim mesmo. Todos sabemos. Ninguém faz filme para ser guardado na gaveta! E isso não desmerece em nada o valor de Roma, nem o torna menos merecedor dos prêmios que já levou. O filme é lindo, de uma poesia encantadora, daquelas que têm o poder de causar choque, produzindo emoções verdadeiras, como defendia o poeta Pierre Reverdy.  Um filme PRA PENSAR e PRA SE EMOCIONAR.

O poder dos documentários

•março 1, 2019 • Leave a Comment

Ouvindo o discurso das ganhadoras do Oscar de melhor documentário de curta metragem deste ano – Period. End of a Sentence. (2018), da iraniana-americana Rayka Zehtabchi – uma frase ficou gravada em minha mente e, imagino, na de muitas outras pessoas também: “Period should end a sentence. Not a girl’s education” [“Period” deveria encerrar uma sentença. Não a educação de uma menina”]. Lembrando aqui que a palavra “period” em inglês significa tanto ponto final como menstruação, possibilitando assim o êxito desse jogo de palavras.

A partir dessa frase e do próprio curta, ao qual assisti logo em seguida, muitos pensamentos relacionados à força do documentário e ao poder que ele tem de propor mudanças, e às vezes até mesmo de realizá-las, me vieram à cabeça. Principalmente levando em conta que, hoje em dia, o espectador comum está sabendo cada vez mais reconhecer o valor desse gênero, por tanto tempo discriminado, apesar de sua origem se confundir com a do próprio cinema (vide os filmes dos Irmãos Lumière!).

Fiquei, então, lembrando de alguns documentários que vi recentemente e que trazem uma mensagem tão forte que acabam por ter o real poder de mudar coisas… Comento rapidamente dois deles :

Born into brothels (2004), de Zana Briski e Ross Kauffman,  é uma coprodução Estados Unidos / Índia, que também levou o Oscar de melhor documentário em 2005, só que na categoria de longa-metragem. O filme mostra a situação degradante em que vivem os filhos das prostitutas de um bordel em Calcutá, em pleno distrito da luz vermelha. Crianças que, em sua maioria, não frequentam a escola ou que, quando vão, acabam falhando por não terem tempo para dedicar aos estudos, já que suas rotinas são preenchidas por uma grande quantidade de trabalhos domésticos. As meninas  não enxergam outro caminho que não o de seguirem os passos das mães, avós e até bisavós, tornando-se elas mesmas prostitutas assim que atingirem a idade “apropriada”. Um filme que tem, portanto, tudo para ser duríssimo (e é), mas que consegue, de alguma maneira, dar-nos um sopro de esperança em meio a um cenário de total horror para nossos olhos ocidentais e de elite.

A diretora do filme, Zana Briski ou Auntie Zana (Tia Zana), como é carinhosamente chamada pelas crianças, é uma fotógrafa inglesa que foi a Sonagachi para fazer um registro fotográfico das prostitutas do Red Light District, quando se deparou com a situação degradante em que vivem os filhos dessas mulheres. Sem alternativa, as crianças vivem ali, no meio do bordel, convivendo diretamente com as drogas e a prostituição. Meninos e meninas sem ambições ou visões de futuro. Zana introduz, porém, o “sonho” em suas vidas! Isso porque, ao perceber o interesse pelos equipamentos usados em seu trabalho – as câmeras fotográficas -, ela decide ensiná-los a fotografar. Coloca uma câmera na mão de cada um (no filme aparecem 8 crianças) e pede para que registrem a vida que vêem diante de seus olhos. Lhes ensina a enquadrar, a compor, a ver a vida sob outro ângulo, a sonhar…

O filme mostra também o périplo da fotógrafa-diretora para colocar essas crianças em internatos, lutando contra o preconceito e a falta de dinheiro. A fotógrafa se sai vencedora em alguns casos e em outros, nem tanto, com algumas crianças chegando a entrar em escolas, mas depois abandonando as instituições.

Apesar dos “fracassos”, não se pode dizer que o trabalho de Zana foi em vão! Avijit, um dos meninos mais talentosos do grupo, chega mesmo a ir a Amsterdam participar como jurado mirim de uma conferência promovida pela World Press Forum Foundation, indo mais tarde estudar cinema em Nova Iorque. Um sopro de esperança que nos faz acreditar que, com esforço e amor, dá para se mudar o destino de alguém.

Após a conclusão do filme, Zana ainda criou uma ONG chamada Kids with Cameras, numa tentativa de seguir apoiando crianças em situação de risco, ensinando-as a arte da fotografia e usando o dinheiro das fotos para bancar a educação deles. Um belo documentário com a força para mudar algumas vidas!

The Dancing boys of Afghanistan (2010), do jornalista afegão Najibullah Quraishi,  apresenta uma triste prática (cultura / mania / doença) afegã chamada Bacha Bazi, que consiste na compra de meninos por parte de homens poderosos, com o objetivo de treiná-los para dançarem e cantarem vestidos de mulher para uma plateia masculina. Em muitos casos, depois das apresentações, os meninos são usados para satisfazer os desejos sexuais de seus donos ou de seus convidados. Os meninos que tentam escapar acabam sendo, muitas vezes, assassinados. Uma história de escravidão, pedofilia, homicídio, assédio e de tantas outras monstruosidades das quais o ser humano infelizmente é capaz.

Para contar essa história, Quraishi convence um poderoso empresário do norte do país a deixá-lo penetrar no mundo do Bacha Bazi, alegando estar realizando ali um documentário que tem como objetivo comparar a prática afegã a práticas similares da Europa (mentira!). Dastager, o empresário, que além de ter outros negócios, investe também na compra de meninos, conta com orgulho os detalhes desse mundo de horror. A naturalidade com ele e outros homens poderosos do Afeganistão falam do assunto é de embrulhar o estômago de qualquer um! Nenhuma vergonha, nenhum remorso, nenhum pudor, tudo parece estar dentro da normalidade, apesar de a prática do Bacha Bazi constituir crime, de acordo com as leis do país. Trata-se, porém, de um símbolo de status e de poder. E, embora a polícia reconheça a prática como crime, alguns policiais são flagrados por Quraishi em uma festa em que meninos se apresentam. Eles assistem a tudo calados. Ou pior, se divertindo. Os “donos” desses meninos se orgulham de suas posses, alegando estarem ajudando a essas crianças, tirando-os da miséria e  oferecendo-lhes “uma vida melhor”.

Depois de perceber que havia ido longe demais em suas filmagens, Quraishi decide sair do Afeganistão e apresentar o filme para ONU, em Nova Iorque. Para Radhika Coomaraswamy – a então Representante Especial do Secretário-Geral para Crianças e Conflito Armado e uma das poucas a reconhecerem a existência do Bacha Bazi no Afeganistão -, a única maneira de acabar com essa prática, seria condenar as pessoas que cometem esse crime. Mas existe muita “gente grande” envolvida e a coisa não é tão simples assim de se resolver. Ora, se até na ONU esse é um assunto tabu, que dirá no próprio Afeganistão?

Mas nem tudo está perdido… Shafiq, um menino de 11 anos que aparece no filme sendo iniciado na prática do Bacha Bazi, comprado por Dastager, foge durante as filmagens e depois é encontrado e devolvido a seu algoz. No entanto, com dinheiro arrecadado por Qurasishi e com a ajuda de uma boa alma afegã, o menino é devolvido à família e confessa ao jornalista que sonha em estudar e um dia se tornar médico.

Em meio a cenários de absoluto caos, The Dancing Boys of Afghanisthan e Born into Brothels mostram que é possível ensinar a sonhar e fazer a diferença na vida de alguém. Pode parecer pouco, mas se pararmos para pensar friamente, na pior das hipóteses,  os filmes de Qurasishi e de Briski ajudaram a salvar ao menos duas vidas!

Por mais documentários assim!

Pequena reflexão sobre o Oscar 2019

•fevereiro 22, 2019 • Leave a Comment

Hollywood não é mais a mesma…

Ainda me falta assistir a um dos indicados ao Oscar de melhor filme de 2019 – Vice (2018), de Adam McKay – mas, diante da lista de nomeados e da crescente diminuição do número de telespectadores da cerimônia de premiação (Oscar 2018 foi o menos assistido da história), já podemos desenvolver alguma reflexão sobre as mudanças por que vem passando a mais renomada premiação cinematográfica do mundo ocidental.

Vamos lá:

Neste ano, os dois filmes com maior número de indicações são Roma (2018), do mexicano Alfonso Cuarón, e A Favorita (2018), do grego Yorgos Lanthimos. Só por aí já se percebe uma mudança gigantesca no perfil premiado pela Academia ultimamente. Roma, que também concorre na categoria de melhor filme estrangeiro, representando o México, é falado em espanhol e é um filme extremamente poético, em preto e branco, de narrativa simples, sem recorrer às inúmeras possibilidades que a tecnologia atual pode propiciar. Filme lento sobre as relações humanas, sobre o amor e sobre a condição da mulher, independente da classe social a que pertença. Um lindo filme de arte, com muito mais perfil pra ganhar o Festival de Cannes ou o de Berlim. Já A Favorita, uma co-produção britânico-americana, é marcada pelo humor peculiar de Lanthimos, diretor também do fantástico (em todos os sentidos) O Lagosta (2015), que, no mínimo, se pode dizer, não caiu no gosto de tantos espectadores assim. Eu mesma o indiquei a alguns amigos que depois vinham me perguntar que filme era aquele… A Favorita, por sua vez, não tem tampouco perfil de blockbuster, apesar da estética moderna dada a esse filme épico – com imagens distorcidas pelo uso de grandes angulares, trilha sonora dissonante e monocórdica – e da forte carga de comicidade dos diálogos, que acabam por transformar o filme em uma grande sátira à Inglaterra do século 18, mostrando uma sociedade marcada pela aparência e pela hipocrisia.

Cabe então a pergunta: O que aconteceu com aquela velha Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, sediada em Hollywood, que premiava o filme-espetáculo – conhecido também como “filmão” – grandes produções que levavam milhares de espectadores às salas de cinema? O que aconteceu com aquela premiação criticada pelos amantes do cinema de arte, que a consideravam superficial e despreocupada com a realidade? Estaria Hollywood mudando?

Analisando os últimos Óscares, me parece que, hoje, os filmes, para serem premiados, muito mais do que apresentarem inovações tecnológicas ou estéticas, devem estar implicados em alguma “causa” da atualidade, seja a questão da discriminação racial contra negros, latino-americanos, mulheres, grupo LGBT e/ou outras “minorias”, ou questões ambientais que afetam todo o planeta, ou qualquer outro tema que esteja na ordem do dia. O que certamente não é de todo mau. Ao contrário, é uma resposta positiva ao que tanto se criticou no passado sobre as premiações dadas pela Academia a filmes alienantes, de “transparência”, que distanciavam cada vez mais o espectador da realidade vivida.

No ano passado, por exemplo, em plena estupefação do mundo diante da possibilidade da construção de um muro separando México dos Estados Unidos, quem levou o prêmio foi o mexicano Guillermo del Toro com o filme A forma da água (2018). Não que o filme não fosse bom, mas estavam competindo outros filmes igualmente bons como os excelentes Três anúncios para um crime (2017), de Martin McDonagh e Corra! (2017), de Jordan Peele, sem falar dos outros competidores. Será que o fato de Del Toro ser mexicano pesou na eleição do filme para levar o prêmio maior da noite ? Para mim, sem dúvida, a resposta é sim! Da mesma maneira que no ano anterior pesou o fato de Moonlight – sob a luz do luar (2016), de Barry Jenkins, ser composto por um elenco 100% de negros, como uma forma de reparar o erro de 2017, em que não se havia premiado nenhum ator, roteirista ou diretor afro-americano. A coisa foi tão explícita que a estatueta, quase certa para o inovador La, la land (2017), de Damien Chazelle, foi tirada literalmente das mãos da equipe desse excelente musical revisitado, depois de um erro na leitura do envelope (ato falho?).

Vitória então para o cinema que faz pensar, certo? Sim. Pode ser. E isso é bom. Por um lado. Por outro, se pensarmos bem, para esse tipo de cinema sempre houve o Festival de Cannes, de Veneza, de Berlim, ou o próprio Sundance, além de tantos outros. Ou seja, já havia (e há) espaço para premiações aos filmes de arte, apesar de persistir a falta de oportunidade para sua exibição, o que é, aliás, um problema bem mais grave até do que as estatuetas distribuídas pelos tantos Festivais mundo afora e para o qual até hoje não se conseguiu encontrar uma solução.

Se todos os festivais do mundo passarem a premiar “causas”, me pergunto então que espaço sobrará para se premiar os filmes de grande bilheteria, os famosos blockbusters que arrastam (ou arrastavam) multidões às salas de cinema e que trazem as inovações tecnológicas que fazem evoluir a sétima arte? Afinal, eles também têm seu valor. Quem não tem vontade às vezes de ver um filme para se distrair, para rir ou simplesmente para ver o tempo passar? Que mal há nisso? Filme também é distração, dentre outras coisas.

Não é porque lutamos para que haja espaço para os filmes de arte, para os documentários e para as pequenas produções, que temos que execrar os filmes de grande produção. É o dinheiro gerado por eles que permite o investimento em novas tecnologias para o cinema e que faz girar a grande roda da indústria cinematográfica. Não precisamos matar um para que viva o outro. Da mesma maneira como podemos (e devemos) conviver todos – de todas as raças, sexos e classe sociais – de forma pacífica e respeitosa, os filmes, grandes e pequenos, de arte ou de diversão também podem (e devem) conviver de forma harmônica. Como La-la Land nos explicou tão bem dois anos atrás não precisamos eliminar o antigo para dar lugar ao novo. Há lugar para todos! É uma questão de adaptar-se, de renovar-se, de abrir mente e coração ao outro, ao novo, ao diferente, e, acima de tudo, é uma questão de respeito. Respeitemos os filmes de diferentes estilos, cores, gêneros, orçamentos e nacionalidades… e que venham os prêmios! 

Terra Selvagem (2017)

•setembro 24, 2017 • Leave a Comment

Título original: Wind River

Origem: EUA

Direção: Taylor Sheridan

Roteiro: Taylor Sheridan

Elenco: Jeremy Renner, Elizabeth Olsen, Julia Jones, Graham Greene, Kelsey Asbille, Apesanahkwat

Depois de séculos sem ir ao cinema – sim, acreditem!!!! – ontem fui a uma sala de cinema perto de casa para assistir ao filme Wind River, aqui na Argentina traduzido como Vientos Salvajes. Confesso que, depois de haver visto o trailer, fui achando que ia assistir a mais um thriller americano, tipo blockbuster… que, aliás, não desgosto nem um pouco! Mas estava meio desanimada, pensando que depois de tanto tempo sem fazer um de meus programas preferidos, ia acabar ver um filme comum. Para minha sorte, surpresa e prazer, achei o filme muito bom, e nada comum!!!!

O filme de Taylor Sheridan é um thriller diferente. Diria talvez que estamos aqui diante de um thriller filosófico, um suspense que nos faz refletir sobre questões profundas da natureza humana e das leis que regem nossas sociedades modernas. Não se trata de um mistério insolucionável que você só vai desvendar nos últimos minutos… nem por isso, deixa de prender a atenção do princípio ao fim. Mérito de um roteiro redondo e de uma montagem cuidadosa, que resultam em um filme de ritmo excelente, equilibrado, misturando cenas de contemplação, reflexão e dor a cenas de ação, de revolta, de protesto. Ora temos planos gerais com bucólicas paisagens brancas das montanhas nevadas de Wyoming, ora temos cenas violentas de luta, em ambientes fechados, com uma câmera nervosa, trêmula, desesperada!

Baseado em fatos reais, o filme conta a saga da investigação do assassinato de Natalie (Kelsey Asbille), uma jovem índia de 18 anos, encontrada morta no meio de um deserto de neves, descalça, a seis milhas de distância de qualquer rastro de civilização. O corpo é encontrado pelo caçador de predadores Cory Lambert (Jeremy Renner), que vai solicitar ajuda do FBI para solicitar o caso. Quem aparece para ajuda-lo é a agente Jane Banner (Elizabeth Olsen), que chega em um carro alugado e sem nenhuma equipe de apoio.

Por meio da investigação desse homicídio, o filme de Sheridon vai nos revelando pouco a pouco uma sociedade doente, com leis que protegem empresários do petróleo e supostamente também os povos originários daquelas terras. No entanto, essas mesmas leis que os protegem são também as que jogam contra eles, já que essas reservas indígenas se tornam um território “protegido”, em que as leis dos Estados Unidos não se aplicam. Acabam virando uma terra de ninguém, sem leis, onde o que vale mesmo é a força, a bala ou a flecha. Regiões em que o desaparecimento de mulheres é fato comum e não registrado (contabilizado) pelos dados oficiais.

Terra Selvagem é assim um filme profundo, camuflado pela neve do thriller americano. Devia ter desconfiado que não se ganha um prêmio de melhor diretor em Cannes – Un Certain Regard – à toa! Sim, com esse filme Sheridan ganhou esse prêmio! E também devia ter confiado mais em um roteirista que já nos havia presenteado no ano passado com o ótimo Hell or High Water, pelo qual havia sido, inclusive, indicado ao Oscar. E antes ainda, com o roteiro do também excelente Sicario (2015).

Enfim, acho que depois de tanto tempo concentrada na minha pesquisa de doutorado, acabei perdendo a cancha de detectar sinais de um bom filme… Que venham outras surpresas por aí!

Um filme PRA PENSAR e PRA SE ANGUSTIAR.

 

 

 
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