A Pé Ele Não Vai Longe (2018)
Título original: “Don’t Worry, He won’t get far on foot”
Origem: EUA / França
Roteiro e direção: Gus Van Sant
Baseado no livro de John Callahan
Elenco: Joaquin Phoenix, Rooney Mara, Jonah Hill, Jack Black, Tony Greenhand, Beth Ditto, Kim Gordon
Mais um filme que passou despercebido pela crítica, pelo público e pelas premiações logo de seu lançamento em 2018. Uma obra do nada ortodoxo Gus Van Sant, subestimada provavelmente por retratar de forma realista e sem censura os dramas e as loucuras de um personagem “politicamente incorreto”, o cartunista americano John Callahan.
Aos 21 anos de idade, Callahan sofreu um trágico acidente de carro que o deixou tetraplégico. A noite tinha sido longa, com muita bebida e irresponsabilidade envolvida. Nessa altura, o jovem já havia se tornado um alcóolatra de primeira grandeza, usando a bebida como escudo para sobreviver a seus traumas, medos e angústias, fruto, segundo ele, de se sentir rejeitado por sua mãe biológica, uma professora americana-irlandesa de cabelos ruivos (isso era tudo o que ele sabia sobre ela!). Adotado por uma família com mais cinco filhos, Callahan nunca se sentiu parte daquele novo lar e encontrou no álcool uma solução para ir tocando a vida. Depois do acidente, ele se afundou ainda mais no alcoolismo, até resolver procurar ajuda. Dali, a vida do jovem vai dar uma reviravolta e ele vai descobrir no cartoon a sua alforria. Após recuperar parte do movimento dos membros superiores, ele começou a desenhar com ambas as mãos, produzindo desenhos politicamente incorretos que tratavam de temas tabu, relacionados às deficiências e aos preconceitos.
O filme de Van Sant começa com depoimentos de pessoas que sofrem de alcoolismo, numa pegada bem de documentário, com uma câmera instável, muitos closes, cores desbotadas e um ar de crueza e naturalidade. A gente só desconfia que se trata de uma ficção por causa da aparição de Joaquin Phoenix em meio aos depoentes.
Em seguida, vemos o mesmo Joaquin Phoenix transformado em John Callahan, sentado em uma cadeira de rodas colocada em um palco, de onde ele conta trechos de sua vida antes do acidente. A partir daí, uma sucessão de flashbacks vão reconstituir a história do cartunista até aquele momento do palco. Em um estilo bem Gus Van Sant de ser, a história não é apresentada de forma linear. A montagem, que leva a assinatura do próprio diretor, é uma verdadeira colcha de retalhos, bem fragmentada, alternando depoimentos de Callahan nos vários locais em que ele contava sua história com desenhos de sua autoria, que retratam muito de sua personalidade ácida e irreverente. Entre esses espaços, está a casa de seu mentor “espiritual”, Donnie, brilhantemente interpretado por Johan Hill ( e aqui tenho que abrir parênteses para enaltecer a atuação de Hill, que nos acostumamos a ver mais em papéis cômicos). Vai ser ali que Callahan encontrará apoio e forças para se livrar do alcoolismo. Um grupo de pessoas como ele, com traumas, medos e arrependimentos, gente de vida sofrida, com personalidades e histórias bem distintas, mas que têm ali um espaço para cuspirem seus problemas, livre de julgamentos ou lições de moral. Um lugar onde não há tampouco espaço para auto-piedade. Essa é, aliás, a tônica do filme de Gus Van Sant, baseado no livro homônimo escrito pelo próprio Callahan. Nada de justificar o alcoolismo pelas frustrações, sofrimentos e traumas. Mas, ao mesmo tempo, como não? Como seguir adiante com tanto peso carregado? Com tanta dor sufocando o peito? A espiritualidade pode ser uma solução. O Callahan de Van Sant não é só vítima, não é santo, nem é só demônio. Ele é, antes de tudo, humano. Gente que erra, cai e consegue se levantar.
Destaque para a atuação de Joaquin Phoenix, que outra vez dá show de interpretação no papel de John Callahan.
Um filme PRA PENSAR.