Roma (2018)
Origem: México
Diretor: Alfonso Cuarón
Roteirista: Alfonso Cuarón
Atores: Yalitza Aparicio, Marina de Tavira, Marco Graf, Daniela Demesa, Carlos Peralta, Nancy García
Basta digitar “Roma Alfonso Cuarón” no Google para ficar impressionado com o número de prêmios recebidos por esse filme tão pessoal do diretor mexicano, já ganhador de vários Oscares por seu também excelente Gravidade (2013). (Leia a crítica no post de 27/10/2013). No entanto, alguns espectadores têm ficado surpresos, alguns até indignados, com essa quantidade de galhardetes recebidos por um filme que consideram monótono, lento demais e com uma história que não conta nada… um “dramalhinho”, como colocou uma de minhas alunas.
Mas vamos lá, vou fazer aqui explicitamente a defesa de Roma, que considero um filme excelente, super merecedor dos prêmios recebidos, apesar de ter dito em texto recente que não era obra para ganhar o Oscar de melhor filme de 2019, o que continuo afirmando.
Roma decididamente não é um filme tipicamente hollywoodiano. Trata-se de um filme de arte, poético ao extremo, com uma fotografia de encher os olhos e o coração, e com movimentos de câmera precisos, bem calculados, coreografados, capazes de dar ao espectador uma boa noção da realidade ali retratada. O ritmo é lento sim, mas é justamente essa lentidão que nos permite apreciar a beleza de sua fotografia e os detalhes de uma história “sem grandes acontecimentos”.
Já de início, o plano do chão (não identificável num primeiro momento) em plongée total com uma água ensaboada que vem e vai em pequenas ondas, é simplesmente maravilhoso! Ondas que refletem um pedaço de céu. Um avião que passa, confinado no quadrado daquele reflexo. Ondas que vão e vêm, num movimento que embala e que já anuncia o ritmo da narrativa a que vamos assistir. A câmera se move em seguida para cima e abre para mostrar o palco da história que será contada, perseguindo a empregada doméstica Cleo (Yalitza Aparicio), a protagonista do filme, num belo plano-sequência sem pressa de tudo mostrar. Um início que, na verdade, faz eco à sequência já quase do final do filme, em que as ondas do mar vêm e vão, como se tivessem o poder de lavar as feridas e levar embora as tristezas e decepções da “vida como ela é”. Sim, porque Roma é isso, um filme sobre “a vida como ela é”. Um filme de narrativa simples, que não conta nenhuma história mirabolante, nenhum “fait divers”, não sendo nem de longe o que costumamos chamar de dramalhão mexicano.
A história contada em Roma é simples, é a da infância do próprio diretor Alfonso Cuarón, terceiro de quatro filhos de uma família de classe média alta mexicana, morador do bairro Roma. Uma história que poderia ser a minha, a sua e a de tantas outras pessoas que vivem ao nosso redor. Uma história, no entanto, muito característica das sociedades latino-americanas, que costumavam ter (ou ainda têm) empregadas domésticas que moravam em suas casas e que faziam da vida da família para a qual trabalhavam a sua própria vida. Uma relação, sem dúvida, extremamente complicada de se entender se vista por olhos europeus ou norte-americanos. Para eles, essa relação é algo impensável, inconcebível, se situando no limiar da escravidão. E, infelizmente, não podemos negar que há casos que chegam muito próximo disso. Há patrões que maltratam seus empregados, que lhes pagam de forma indigna, mesmo fazendo-lhes trabalhar horas a fio. Há os que lhes dão comidas diferentes, que separam os pratos e copos que podem usar, que lhes privam de ter suas próprias vidas. Reflexo direto da desigualdade social desses países, mas que, felizmente, vêm mudando pouco a pouco, sobretudo em função de vários direitos trabalhistas adquiridos. Por outro lado, não podemos negar tampouco que há um lado afetivo que nasce dessa relação e que é igualmente difícil de explicar ou de transmitir para alguém que nunca teve uma babá, uma empregada morando em casa, que nunca viveu esse sentimento, que nunca experimentou o amor que pode dali brotar. E para mim, é aí que está a grande beleza do filme de Cuarón. Afinal, falar sobre os problemas surgidos dessa relação desigual, fruto dos abismos sociais presentes nos países subdesenvolvidos ou em vias de desenvolvimento, não me parece original, embora de suma importância. Esse tema já vimos aos montes! Mas conseguir colocar a lupa nas flores que nascem desses cactos, isso sim, me parece um trabalho difícil, tarefa para uma alma sensível, merecedora de muitos prêmios.
Roma é então um filme sobre o amor. Uma história sobre seres humanos que, independentemente da classe social a que pertencem, amam, sofrem, choram, riem, sentem, vivem… Cuarón consegue assim, através de um trecho da vida de Cleo, e de um período difícil na história de sua própria família – separação dos pais –, descrever a complexa relação entre empregada e patroa de uma maneira sensível, honesta, simples, delicada, sem cair nunca nos estereótipos e sem fazer justamente grandes dramas de tudo isso. Mostra, ao mesmo tempo, a grande quantidade de horas trabalhadas sem descanso por parte de Cleo, da falta de tempo e de espaço para sua vida pessoal, mas também mostra o apoio que ela tem de Sofía (Marina de Tavira), sua patroa, na hora em que suas escolhas, tomadas fora do universo de trabalho, acabam conduzindo-a para um caminho de sofrimento. O foco passa a ser aí a solidariedade entre essas duas mulheres “abandonadas” por seus parceiros, o apoio mútuo, a compreensão e, por que não dizer, a amizade que surge entre elas. Sofía às vezes grita com Cleo, abusando de sua condição de patroa, mas também grita com o filho, abusando da sua condição de mãe, da mesma maneira que o marido grita com ela, abusando da sua condição de marido e de homem…
Roma, que, aliás, Cuarón nunca escondeu que retratava sua infância, não deixa de ser um tipo de mea culpa do diretor, ou melhor, uma bela reflexão sobre essa relação desigual entre patrão e empregado doméstico, causada sobretudo pelas disparidades sociais de nossos países ainda tão carentes de desenvolvimento. Mas a beleza maior que ele mostra, no entanto, são os sentimentos genuínos que podem existir nessas relações, amores verdadeiros entre crianças e babás (como o dele para Libo, verdadeira Cleo, a quem o filme é dedicado), confiança e solidariedade entre mães e empregadas, mulheres que confiam seus filhos aos cuidados de outras mulheres, às vezes também mães, tantas vezes quase-mães. Algo que teve em mim, latino-americana que sou, o efeito das madeleines de Proust… Não pude me impedir de voltar no tempo e pensar na minha “Baia” – era assim que eu a chamava – que tive que deixar em Fortaleza quando minha família se mudou para Brasília. Eu só tinha 4 anos e, naquela época, ela e minha amiga Adriana, que é minha amiga até hoje, eram meu mundo. Lembro até hoje da dor de deixá-las… A nossa relação era tão forte que quando nasceu meu primogênito, “Baia” veio cuidar de mim e dele, ficou três meses comigo em Brasília, morando em minha casa, dividindo comigo minha intimidade, me ajudando em minhas angústias de mãe de primeira viagem. Ela já tinha dois filhos adultos. Me senti protegida, amada, querida e tive certeza de que meu filho também estava sendo muito amado por ela.
Quanto à quantidade absurda de prêmios arrebatados por Roma, claro que existe também aí por trás toda uma indústria. Com certeza a poderosa Netflix, percebendo o potencial do filme de Cuarón, fez uma grande campanha para que eles acontecessem. O jogo da indústria cinematográfico funciona assim mesmo. Todos sabemos. Ninguém faz filme para ser guardado na gaveta! E isso não desmerece em nada o valor de Roma, nem o torna menos merecedor dos prêmios que já levou. O filme é lindo, de uma poesia encantadora, daquelas que têm o poder de causar choque, produzindo emoções verdadeiras, como defendia o poeta Pierre Reverdy. Um filme PRA PENSAR e PRA SE EMOCIONAR.
Ótimo a sua análise. Muitos pontos em comum com o que penso.
Mas vc concorda com o que o Spielberg opina sobre os filmes de streaming ?
https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2019/03/apos-premios-de-roma-steven-spielberg-quer-barrar-netflix-no-oscar.shtml?utm_source=twitter&utm_medium=social&utm_campaign=twfolha&fbclid=IwAR3BI2ThOFBakOOMCNb6LKx0pwmfZevwFZ5LRxTA-CuhLmWI8caAY2TrRF0
Andréa Assis said this on março 5, 2019 at 04:21 |
Ótima a sua análise. Muitos pontos em comum com o que penso sobre o filme.
Mas vc concorda com o o que o Spielberg disse sobre filmes de streaming ?
https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2019/03/apos-premios-de-roma-steven-spielberg-quer-barrar-netflix-no-oscar.shtml?utm_source=twitter&utm_medium=social&utm_campaign=twfolha&fbclid=IwAR3BI2ThOFBakOOMCNb6LKx0pwmfZevwFZ5LRxTA-CuhLmWI8caAY2TrRF0
Andréa Assis said this on março 5, 2019 at 04:24 |
Oi, Andréa, que bom ver você por aqui! Obrigada pelo comentário. Olha, não concordo com o Spielberg não… hoje a coisa está toda muito misturada, as pessoas assistem aos filmes no cinema, nos seus tablets, computadores, telefones, etc. Para mim um filme deve ser julgado pelo que apresenta e não pela plataforma em que é lançado! Beijos
Lilia Lustosa said this on março 5, 2019 at 12:27 |