BAFICI 2017 – Buenos Aires Festival Internacional de Cine Independiente

Buenos Aires, De 19 a 30 de abril 

Neste ano, o Brasil esteve presente no BAFICI com 10 filmes, de origens e gêneros bastante diversos. Documentários, filmes de arte, documentários com toques de ficção, ficções com toques de documentários, e até filme de terror falado em inglês. Obras realizadas por diretores de diferentes gerações, experientes ou principiantes, conhecidos ou nem tanto, oriundos de diferentes regiões geográficas do nosso imenso país. Dos 10, tive a oportunidade de assistir a seis. Aí vão algumas considerações.

 

A Cidade do Futuro (2016), de Cláudio Marques e Marília Hughes – Compentencia Oficial Latinoamericana – PREMIO DE MELHOR FILME LATINO-AMERICANO

Segundo longa metragem da dupla Cláudio Marques e Marília Hughes, o filme A Cidade do futuro é uma ficção com toques de documentário. Apesar do uso de vários artifícios do gênero documentário – imagens de arquivo e alguns depoimentos -, é a ficção que assume aqui o papel de protagonista ao colocar em primeiro plano a história de três jovens homossexuais habitantes de uma cidade do interior da Bahia. A ênfase é colocada nos sofrimentos vividos pelo trio em função de sua orientação sexual e da mentalidade pequena de sua população. A parte documental acaba ficando em segundo plano e, de certo modo, meio solta do restante da história. Uma pena porque a história de fundação daquela comunidade, fruto da desapropriação de terras para a construção da Usina Hidrelétrica de Sobradinho no interior da Estado, já seria por si só de extrema riqueza para a construção do filme. Com um bela fotografia, onde predominam as cores fortes, A Cidade do Futuro mostra a realidade de tantas cidades pequenas no interior do Brasil, com seu jeito simples de viver, com seus pequenos prazeres e sua mentalidade ainda tão tradicional (quadrada) e preconceituosa. A trilha sonora é bem trabalhada, com destaque para música Jeito Carinhoso, da dupla Jads & Jadson, que funciona como leitmotiv do filme. O grande senão do filme fica por conta da atuação de seus protagonistas, Mila Suzarte, Gilmar Araújo e Igor Santos. Atores estreantes – e isso se nota, sobretudo nas cenas iniciais do filme – que vão, pouco a pouco, ficando mais à vontade em cena e conseguindo nos envolver na história de seus personagens, com exceção de Igor, que até o fim, parece não encontrar sua zona de conforto! A ficção apresentada, no entanto, ignorou o desconforto de Igor e a fraqueza do aspecto documental da história e conquistou o júri portenho, tendo A Cidade do Futuro recebido o prêmio de MELHOR FILME LATINO AMERICANO na 19a edição do BAFICI.

 

A Destruição de Bernardet (2016), de Claudia Priscilla e Pedro Marques, na categoria Cinefilia

Documentário com toques de ficção sobre a vida de Jean-Claude Bernardet, francês (nascido na Bélgica por acaso) naturalizado brasileiro, crítico de cinema, e um dos nomes mais importantes da nossa história cinematográfica. Crítico fundamental na época de formação e consolidação do Cinema Novo – movimento cinematográfico mais importante da historia do cinema brasileiro – Bernardet é também roteirista, diretor, filósofo, professor de cinema e, mais recentemente, ator. O divertido e, ao mesmo tempo, profundo filme da dupla Claudia Priscilla e Pedro Marques apresenta, então, uma grande reflexão sobre os caminhos que levaram Bernardet a enveredar, já no crepúsculo da vida, para o mundo da atuação. Muitas vezes considerado “explorado” pelos jovens diretores que o elegem para atuar em suas obras, Bernardet desconstrói esse pensamento, colocando-nos diante de outra possibilidade: não seria ele – já quase sem visão e convivendo com a iminência da morte em função do HIV – que estaria explorando esses jovens, usando-os para poder continuar vivendo? Quem é quem nesse jogo de exploração? Em A Destruição de Bernardet, morte e vida andam lado a lado, são parceiras. Essa situação, no entanto, não assusta. A morte é tratada aqui com naturalidade, leveza e até com certo carinho. Temas como AIDS, suicídio assistido, passado-presente, erros, acertos, projetos, futuro (a curto prazo) são tratados neste filme-provocação, montado com esmero. A Destruição de Bernardet tem excelente ritmo, belas imagens, excelentes diálogos (conversas e reflexões) e acaba por nos fazer esquecer o tempo lá fora… Ao mesmo tempo, coloca-nos em profunda reflexão sobre os rumos que às vezes tomam as nossas vidas e as diversas possibilidades que temos para lidar com esses caminhos.

 

Arábia (2017), de Affonso Uchoa e João Dumans – Competencia Internacional – MENÇAO ESPECIAL DO JURI

Os mineiros Affonso Uchoa e João Dumans são hoje talvez os novos queridinhos do cinema independente contemporâneo, ou do também chamado cinema de periferia. Uma fama que parece já ter atravessado as fronteiras, visto que a sala de cinema da sessão de imprensa estava lotada. Já premiados no Festival de Tiradentes, o maior festival de cinema contemporâneo no Brasil hoje, os dois já haviam trabalhado juntos no bem sucedido A vizinhança do Tigre (2014) – Affonso Uchoa na direção e João Dumans no roteiro – e agora repetem a dose com o filme Arábia, único filme brasileiro selecionado para participar do Festival de Roterdã, na Holanda. Desta feita, os dois dividem a direção. O filme conta a história de um rapaz que mora com seu irmão mais novo no bairro proletário de Ouro Preto – a mãe nunca aparece – e que, num belo dia, descobre um caderno de anotações – espécie de diário – de um operário meio desconhecido de todos. O filme vai contar, assim, em flashback, o relato dessa road trip nada glamorosa de um brasileiro simples, que erra de trabalho em trabalho, tentando encontrar uma maneira decente de ganhar a vida, e de assim sobreviver. Ele sai de Contagem, bairro da periferia de Belo Horizonte onde mora Affonso Uchoa, e vai acabar parando em Ouro Preto, terra natal de João Dumans. Com um ritmo lento e uma bela fotografia, o filme trata de questões trabalhistas complicadas na realidade brasileira: empregos informais com baixos salários, falta de segurança e condições insalubres no local de trabalho, longas jornadas, exploração do trabalhador, etc. Tudo isso misturado às consequências desse nomadismo involuntário na vida pessoal do protagonista e também na dos vários personagens que ele vai encontrando pelo caminho. Situações que são, no entanto, mostradas de maneira delicada e contemplativa e que são vividas por milhares de brasileiros que, por falta de trabalho digno, veem-se obrigados a se lançar no mundo em busca de qualquer coisa que possa garantir seu sustento, mesmo que isso represente o afastamento da família, a solidão, o desamparo. O título do filme é inspirado no conto homônimo de James Joyce, que tem como fio condutor um menino de um bairro proletário de Dublin e sua fascinação diante de uma quermesse de nome Arábia. Um filme forte, político, mas ao mesmo tempo, sensível e poético, que nos leva a refletir sobre muitas questões a serem ainda resolvidas no nosso Brasil.

 

Beduíno (2016), de Júlio Bressane, categoria Trayectorias

Um filme original, complexo e hermético que requer do espectador um bom entendimento da obra de seu diretor, Julio Bressane, para ser bem entendido e apreciado. Ou como o próprio diretor diz, “para ser contemplado”! Quase uma peça de teatro, Beduíno se passa praticamente todo dentro do apartamento de seus protagonistas, os personagens-atores Fernando Eiras e Alessandra Negrini, palco em que várias cenas são encenadas. Todas elas pautadas por uma infinidade de referencias literárias que custaram muita pesquisa ao diretor e, consequentemente, muito tempo de trabalho. Foram 14 anos para concluir o filme! Não se trata de um filme narrativo, mas de um filme reflexivo, em que o casal de protagonistas discute a relação, seus sonhos, seus desejos, suas verdades e vão assim, aos poucos, passeando por obras de arte, de arquitetura e até mesmo pelas próprias obras de Bressane, como no caso de seu filme Memórias de um Estrangulador de Loiras, de 1971. Extremamente preocupado com a estética, Bressane se esmera nos planos e nos ângulos escolhidos, na luz e nas cores, apresentando ao espectador um filme poético, sensual, filosófico e que traz com orgulho a marca dessa figura de proa do nosso Cinema Marginal.

 

Lilith’s Awakening (2016), Monica Demes, Competencia Vanguardia y Género

Parece um pouco estranho falar de “filme brasileiro” quando tudo que se ouve na tela é inglês, saído da boca de atores americanos, atuando em um cenário que nada tem de Brasil. Um filme de terror e suspense, mais especificamente de vampiro, ou melhor de vampira! Sim, porque a questão de gênero é muito presente e forte no primeiro longa metragem de Monica Demes, cearense de 42 anos, mestranda em cinema na Maharishi University, em Iowa, nos Estados Unidos e que declarou em entrevista, que quando criança sonhava em ser vampiro. “Apadrinhada” por ninguém mais ninguém menos que David Lynch, diretor de cinema e do próprio curso, ela foi descoberta ao realizar o curta metragem de animação Halloween, quando estudava cinema na Espanha. Lilith’s Awakening, filmado em preto e branco – com apenas algumas cenas, ou detalhes de cenas, em cores – é rodado no estado de Iowa, num cenário bem típico de filmes de terror americano. Ele conta a historia de Lucy, uma jovem entediada com sua vida matrimonial e com o dia-a-dia nada exciting do vilarejo em que mora. Perdida em seus pesadelos (ou sonhos), a jovem busca um caminho alternativo para encontrar a paz e a felicidade. Uma busca que a levará ao encontro de Lilith, vampira misteriosa, que pode muito bem ser a sua própria essência. Com uma fotografia belíssima, bom ritmo e boa movimentação de câmera, o filme, apesar de não me parecer nada brasileiro – nem no tema nem na estética empregada – é bem produzido, bem montado e bem acabado. Falta-lhe, no entanto, toques de brasilidade, principalmente, por estar participando de um festival de cinema internacional, em que leva em punho a bandeira brasileira!

No intenso agora (2016), de João Moreira Salles, Competencia Oficial Internacional. Sessão com presença de João Moreira Salles.

Escrito e dirigido por João Moreira Salles, talvez tenha sido este o filme brasileiro mais esperado pelo público argentino neste ano. Até aí nenhuma surpresa, já que Moreira Salles goza de prestigio junto ao meio especializado argentino, e que, ainda por cima, faz dez anos que o diretor brasileiro não lança nenhum filme. Agregue-se a isso o fato de que No Intenso Agora, antes de chegar a Buenos Aires, já arrebatou alguns prêmios importantes em festivais de documentários espalhados pelo mundo, tais como três prêmios no Cinéma du Réel, na França, além de uma estreia muito bem recebida no ultimo Festival de Berlim. Narrado em primeira pessoa, o filme é montado em torno de um precioso conjunto de imagens da década de sessenta, incluindo registros da revolta estudantil francesa em maio de 1968, vídeos da chamada Primavera de Praga, feitos por amadores em agosto do mesmo ano, além de imagens dos horrores causados neste mesmo período em cidades como Paris, Praga, Lyon e Rio de Janeiro. Para completar esse conjunto de imagens históricas, Moreira Salles foi buscar nos filmes de família a sua maior fonte de inspiração e, talvez, seu maior trunfo! Trata-se de filmagens feitas pela própria mãe do diretor, em viagem à China em 1966, ano em que se implantou a Grande Revolução Cultural Proletária no país. Imagens feitas em VHS, a cores, e que trazem leveza e poesia às duras imagens em preto e branco dos eventos de 1968. Imagens também que ajudam o narrador-diretor a elaborar suas próprias reflexões acerca da intensidade com que se vive momentos de grandes tensões na história. Momentos em que se vive tão intensamente cada minuto que não se pensa necessariamente no amanhã, na ação que deverá ser tomada em seguida, depois de passada a “tempestade”, ou depois da “conquista”. Momentos intensos que depois viram história, tornando-se parte integrante da memória, e que muitas vezes parecem não ter dado em nada. Conclusão que o próprio filme desmente, já que todo ato terá algum desdobramento, mesmo que não aquele planejado no calor da hora! Um grande filme, repleto de nostalgia e poesia, sobre um momento “quente” da história mundial, em contraste com um momento de puro encantamento e de descoberta na história pessoal do diretor. Um filme que transita de maneira brilhante entre o pessoal e o mundial, entre o privado e o público, e que nos traz uma quantidade enorme de informações importantes para entendermos os rumos tomados pelos eventos dos sessenta e, sobretudo, para pensarmos os acontecimentos de agora.

 

~ by Lilia Lustosa on julho 1, 2017.

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